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Dando pinta no Brasil Colônia

Aqui celebra-se a coragem de quem, lá atrás, mesmo diante da perseguição inquisitorial e portuguesa, foi inventando brechas para poder existir. Com curadoria de Amara Moira.

Exposição fala da existência, já no Brasil Colônia, de pessoas que hoje fariam parte da comunidade LGBTQIAP+


Visite a exposição no Google Arts & Culture

Uma das principais fontes para imaginarmos a presença LGBTQIA+ nos primórdios da colonização do Brasil são as confissões e denúncias feitas à Santa Inquisição. Homens que se envolviam, pontual ou recorrentemente, com outros homens, mulheres fazendo o mesmo com outras mulheres e até figuras que, já naquela época, desafiavam as normas de gênero e mostravam que é, sim, possível existir para além das concepções genitalizantes de homem e mulher, tudo isso se encontra nesses documentos.

Na leitura de tais documentos, vamos nos surpreender tanto com o curioso vocabulário usado para se referir às práticas dissidentes, quanto com essas narrativas que jamais imaginaríamos possíveis em época tão marcada pela perseguição inquisitorial. Em muitos casos, veremos confissões de pessoas que praticaram o "ajuntamento sodomítico" apenas na adolescência, deixando de fazê-lo na vida adulta, o que não lhes livrava de ter que confessar ao inquisidor o "pecado".

Percebam o interesse do inquisidor em descobrir se, nas relações entre mulheres, havia uso de algum instrumento penetrante que fizesse as vezes de pênis. Não havendo, ficava a discussão (que nunca chegou a uma resolução) sobre se o sexo entre mulheres poderia ou não ser enquadrado como sodomia. Além disso, observem que nessa confissão revela-se a existência de toda uma subcultura de relações eróticas e afetivas entre meninas.

Mesmo entre escravizades, havia quem desafiasse as regras impostas pela moral colonizadora, às vezes até colocando em questão a rigidez dos gêneros. No documento de 1591, temos a denúncia sobre aquela que se considera a primeira travesti da história do Brasil: Xica Manicongo. No documento ela aparece com o nome dado pelos escravizadores, mas, após o resgate da sua história pelo pesquisador Luiz Mott, ela foi renomeada Xica Manicongo por Marjorie Marchi, liderança histórica do movimento trans.

A denúncia seria insuficiente para comprovar que as roupas usadas por Xica Manicongo significassem contestação da moral vigente e reprodução de uma tradição de sua terra natal. No entanto, um texto publicado cem anos depois, por Antônio Cadornega, repete quase as mesmas palavras da denúncia. A diferença fica por conta do uso de "jimbandas" na denúncia e "quimbandas" em Cadornega. De qualquer forma, o registro justifica plenamente a reivindicação de Xica como matriarca da travestilidade.

Importante mencionar que havia praticantes inveterades do "pecado nefando" mesmo entre es colonizadôries e que, em alguns casos, o comportamento da pessoa sugeria até um desejo de romper com a rígida fronteira entre os gêneros. Um dos casos mais emblemáticos é o de Baltasar da Lomba.

No processo inquisitorial contra Baltasar da Lomba, ressalte-se ainda o fato de ele ser sempre "paciente" (na terminologia da Inquisição, significaria "passivo") e de se relacionar dessa forma com homens indígenas (a palavra "negro", na época, geralmente referia-se à população indígena, a não ser quando acompanhada de "da Guiné"). Atentar ainda para a presença da palavra tupi "tibiro" (um equivalente de "jimbanda" / "quimbanda"), que retornará em outros momentos dessa exposição.

O que se observava, ainda que só tenhamos registros pela ótica colonizadora, é que os povos indígenas tinham maneiras próprias de pensar sexualidade e gênero. Não é possível estabelecer um padrão que seguissem todos os povos com que se travou contato na colonização. Nesse relato de Gabriel Soares de Sousa, p.ex., vemos que o "pecado nefando" não era tido como afronta pelos tupinambás que ele conheceu ("tupinambá" era termo guarda-chuva para designar povos falantes de línguas do tronco tupi).

Sousa sugere que "o que serve de macho" (o "agente") sente orgulho do que faz, o que talvez indique que haveria estigma na posição de "paciente", ainda que isso não impedisse a prática. É o que se vê no processo contra Baltasar da Lomba, mas também em "Viagem à terra do Brasil" (1578), de Jean de Lery, que conviveu com tupinambás na chamada França Antártica (colônia francesa situada na atual Baía da Guanabara, RJ). No relato, o termo "tyvire" retorna, traduzido por "bougre" pelo missionário.

Segundo Ronaldo Vainfas, nesse período na França, "o termo mais vulgarizado e pejorativo para designar os nefandos era bougre, que [...] aludia tanto aos povos da Bulgária, supostamente afeitos à cópula sodomítica, quanto aos heréticos, queimados por crimes de fé". É daí que vem "bugre" no português: acreditavam-se que indígenas fossem "sodomitas", chamando-es "bougres". O termo hoje perdeu seu sentido original, mas mostra como LGBTfobia e racismo se aliançaram no projeto colonizador.

Um dos casos mais tristes da história colonial: ume indígena foi amarrade à boca de um canhão e fizeram um disparo, partindo seu corpo ao meio. A pessoa não é nomeada e seu crime não foi explicitado, mas pela discurso de Karuatapiran, chefe indígena que pediu aos franceses para efetuar o disparo, tem relação com subversão dos padrões de gênero e sexualidade. A história foi resgatada por Luiz Mott, que a tratou como a primeira morte por LGBTfobia no Brasil e propôs um nome à vítima, Tibira.

Ainda em D'Evreux, lê-se da existência de ume "hermafrodita, no exterior mais mulher do que homem [a tradução inverteu], porque tem face e voz de mulher, cabelos finos, flexíveis e compridos, e contudo casou-se e teve filhos, mas tem um gênio tão forte que vive só [a tradução esqueceu a palavra 'seul'], porque receiam os selvagens da aldeia trocar palavras com ele". "Hermafrodita" poderia indicar intersexualidade ou travestilidade, Luiz Mott defendendo que seria a mesma pessoa morta no canhão.

Em 1551, o jesuíta Pero Corrêa afirma haver aqui "mulheres que assim nas armas como em todas as outras cousas seguem ofício de homens e têm outras mulheres com quem são casadas". A frase já é preciosa, mas a continuação ainda mais: "A maior injúria que lhes podem fazer é chamá-las mulheres". Ou seja, o maior dos insultos seria tratá-los como "mulher", o que não impede Corrêa de os chamar assim. A ofensa era tão grave que, em caso de insistência, corriam "risco de lhe tirarem as frechadas".

Este outro relato, do cronista Pero de Magalhães de Gandavo, reforça o que Corrêa afirmara e evidencia que essas figuras não faziam nenhuma subversão em suas comunidades. Note-se, além disso, a necessidade do cronista de deslegitimar o gênero não só com que tais indivíduos se entendiam, mas pelo qual eram tratados em sua cultura, o que fica explícito em frases como "deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas".

Um dos espaços mais interessantes para buscar registros da existência de figuras que, desde a Idade Média, em Portugal, até os primeiros séculos da colonização do Brasil, desafiavam as normas de gênero e sexualidade é na literatura. Nas cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores galego-portugueses, a temática será explorada recorrentemente, como nessa daqui, de Afonso Anes do Cotom, um dos primeiros registros da existência de mulheres que amavam mulheres.

Pero da Ponte traz um excelente exemplar de "cantiga de escárnio", ou seja, poema que joga com duas camadas de sentido: uma primeira inocente, imaginando um Dom Fernando piedoso e temente a Deus, e outra maliciosa, insinuando que o pouco interesse que ele tem por mulheres se deve, na verdade, à homossexualidade. Digna de nota é a expressão "Beati Oculi", que pode significar tanto "Olhos Felizes" quanto "Feliz do cu", uma vez que "olho" já na época podia ser uma referência ao buraco de trás.

Traço comum a todas as culturas LGBTfóbicas é associar a culturas estrangeiras a prática do "pecado nefando", o que se observa nesta cantiga de escárnio. No contexto da guerra peninsular contra os mouros, não faltarão insinuações de que a sodomia é típica dos árabes (algo que já vimos também na carta de Corrêa) e, já que é assim, poderia ser interessante recrutar para a guerra um segrel (categoria entre o trovador, que era um nobre, e o jogral, artista popular) que tinha fama de sodomita.

Uma das facetas mais conhecidas da lesbofobia é o despeito de homens ao serem rechaçados Nessa sátira disfarçada de poema amoroso, cheia dos labirintos verbais típicos do Barroco, Gregório de Matos finge estar apaixonado por Nise (estrofe 1), daí lamenta esse amor (estrofe 2), mostra-se surpreso ante o fato de uma mulher tão bela sentir atração por mulheres (estrofe 3) e, por fim, reclama que ela deixa todos os homens rendidos , mas "nenhum deixas tomar-te / e tomas toda a mulher" (estrofe 4).

Nas Ordenações Afonsinas, vigentes na segunda metade do sXV em Portugal, temos pela primeira vez a determinação de que "todo homem, que tal pecado [de sodomia] fizer, de qualquer forma que possa ser, seja queimado, e feito pelo fogo em pó, de tal maneira que já nunca de seu corpo e sepultura possa ser ouvida memória".

Nas Ordenações Manuelinas (s.XVI), passam a oferecer recompensa a quem denunciar sodomia, com uma parte dos bens des condenades indo para quem denunciasse. Além disso, agora a condenação recairia tanto sobre es condenades, quanto sobre filhes e descendentes, que ficariam "inabiles e infames" aos olhos da lei, da mesma maneira como quem comete "o crime de lesa Majestade contra seu Rei e Senhor". Por fim, importante notar o surgimento de uma lei específica contra a prática do "travestimento".

Importante observar que, na doação da primeira capitania hereditária, o Rei confere a Duarte Coelho poderes quase plenos para absolver e condenar em seu território, exceto em quatro casos: heresia, traição, moeda falsa e sodomia, quando os condenados deveriam ser punidos com morte. Esse documento serviria de modelo para as demais capitanias, o que significa que o projeto de colonização desse território tinha, na raiz, um desejo de eliminar qualquer vestígio de dissidências sexuais e de gênero.

Clique aqui e veja a exposição digital.

Ficha Técnica

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador do Estado de São Paulo
Rodrigo Garcia
Secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo
Sérgio Sá Leitão  
Secretária Executiva
Cláudia Pedrozo  
Chefe de Gabinete
Frederico Maia Mascarenhas
Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM)
Paula Paiva Ferreira

INSTITUTO ODEON
Diretor Presidente
Carlos Gradim
Diretoria de Operações e Finanças
Roberta Kfuri
Diretoria de Equipamento
Marisa Bueno
Coordenação de Museologia e Acervo
Leonardo Vieira
Museologia
Leila Antero
Coordenação de Relações Institucionais e Projetos
Luiz Henrique Amoêdo
Assessoria de Comunicação
Eduardo Cordeiro
Coordenação do Núcleo de Ação Educativa
Val Chagas
Coordenação Administrativo Financeiro
Luiz Custódio da Silva Junior
Administrativo Financeiro
Vanda Maria Batista, Alexia Bastos Souza e Jhonatha Lucas
Compras
Jeferson Rocha de Lima
Equipe de Apoio
Produção

Denise Soares e Heitor Gabriel
Núcleo de Ação Educativo
Nay Costa e Ramon Lima

Créditos: todas as mídias

Em alguns casos, é possível que a história em destaque tenha sido criada por terceiros independentes. Portanto, ela pode não representar as visões das instituições, listadas abaixo, que forneceram o conteúdo.

Workshops & Treinamento

Palestras, workshops e grupos de estudo aprofundam a visão sobre a cultura LGBTQIA+

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